quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Terramoto e ocupação

Jorge Cadima

O significado da ocupação militar, a pretexto da tragédia, extravasa as fronteiras

O terramoto do Haiti ocorreu na terça-feira, 12 de Janeiro. Em 24 horas, os militares dos EUA haviam «tomado controlo» do aeroporto da capital (BBC, 18.1.10). Numa semana os EUA transportaram 9 a 10 mil soldados para o Haiti e «o Pentágono prepara-se para enviar mais» (New York Times, 17/1). O Canadá vai enviar mais mil soldados (Financial Times, 17/1). Mas a solidariedade internacional quase não saiu do aeroporto de Port-au-Prince: 5 dias após o sismo «a ONU diz que alimentou 8 mil pessoas, mas 2 a 3 milhões continuam desesperadamente necessitadas» (NYT, 17/1). Ainda o NYT explica: «O Programa Alimentar Mundial (WFP) conseguiu finalmente fazer aterrar voos com comida, medicamentos e água no sábado, depois de tentativas goradas na quinta e sexta-feira, afirmou um funcionário dessa agência. Esses voos foram desviados para que os Estados Unidos pudessem aterrar tropas e equipamento, e transportar americanos e outros estrangeiros para [destinos] seguros. «Há 200 voos a chegar e partir todos os dias, o que é uma quantidade incrível para um país como o Haiti» disse Jarry Emmanuel, o funcionário logístico de transportes aéreos da operação haitiana da agência [WFP]. «Mas a maioria desses voos são para os militares dos Estados Unidos». Acrescentou: «As prioridades deles são garantir o controlo do país. As nossas são dar de comer». A BBC (18/1) informa que «várias agências protestaram pelo facto de não conseguirem fazer chegar auxílio através do aeroporto», mas a família Clinton e a sua corte de jornalistas passam por lá à vontade. «A França e o Brasil apresentaram protestos oficiais porque os militares dos EUA que controlam o aeroporto negaram autorização de aterragem a voos de auxílio dos seus países» (AP, 17/1), incluindo um avião francês com um hospital móvel. Idêntico protesto veio da organização dos países das Caraíbas (CARICOM) e da Nicarágua (cubadebate, 17/1). O embaixador de França no Haiti declarou que «o aeroporto não está à disposição da comunidade internacional, transformou-se num apêndice de Washington» (Il Messaggero, 17/1). O Secretário de Estado francês para a Cooperação Alain Joyandet, pediu à ONU para definir o papel dos EUA: «trata-se de ajudar o Haiti, não de ocupar o Haiti» (Xinhua, 18/1).

Nos últimos dias repete-se que o Haiti «já não tinha Estado» antes do terramoto. Mas a comunicação social de regime pouco falou da história do Haiti no Século XX: uma história de ocupação pelos EUA (1915-34), feroz ditadura pró-americana da família Duvalier e os seus facínoras «Tontons-Macoute» (1957-86), golpes e invasões patrocinadas pelos EUA e França. Por duas vezes nos últimos 20 anos o Presidente Aristide, eleito por esmagadoras maiorias, foi derrubado em golpes de Estado inspirados em Washington. Em 2004, Aristide, tal como o Presidente hondurenho Zelaya, foi metido num avião e exilado. O próprio contou (entrevista à jornalista Amy Goodman, democracynow) que foram militares e membros da embaixada dos EUA no Haiti que o raptaram na noite de 28-29 de Fevereiro, sob o pretexto de garantir a sua segurança. Logo no dia 29, o Conselho de Segurança da ONU «tomou nota da demissão» de Aristide e aprovou o envio duma missão militar (resolução 1529), tendo os Marines dos EUA chegado ao país antes do anoitecer (Wikipedia, «2004 Haiti rebellion»). Como nas Honduras, o «quarto poder» do grande capital optou por um silêncio conivente. O papel da missão militar da ONU é relatado num filme disponível em globalresearch (item 16998).

A atitude do gigante imperialista vizinho do Haiti é coerente com a sua História. Mas o significado da ocupação militar, a pretexto da tragédia, extravasa as fronteiras daquele martirizado país. Integra-se no cerco militar que os EUA estão a montar à Venezuela e a Cuba, com as novas bases militares na Colômbia, as provocações aéreas a partir da colónia holandesa de Curaçao, o reforço da presença militar no Panamá, a recente inclusão de Cuba na lista de «países promotores do terrorismo». É cada vez mais evidente a opção dos EUA por uma solução militar de largo espectro para a profundíssima crise em que estão atolados. Do Afeganistão e Paquistão, do Iémen à América Latina, quem conseguir descobrir diferenças entre Obama e Bush que avise.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

O Natal dos banqueiros

Por: José Niza - In ''O Ribatejo''

1. Depois do que aqui escrevi na semana passada sobre "o dinheiro", não esperava tão depressa voltar ao assunto: preferia que, em tempo de Natal, a caneta me conduzisse para outras paragens, e me levasse por caminhos que fossem de procura, ou de descoberta, de uma réstia de esperança, de uma festa numa praça de amor, de paz e de canções.
Mas não. O homem põe. E a banca dispõe.
2. Um relatório há poucos dias divulgado pela CMVM - a Bolsa - deu-me um murro no estômago. Não é que eu tenha andado distraído da ganância e dos festins da nossa alta finança. Mas tudo tem que ter limites: os números revelados nesse relatório sobre os salários dos administradores dos bancos e das empresas mais importantes do País, para além de aterradores, são um insulto ao povo português e, em especial, aos mais de 500 mil trabalhadores que estão no desemprego.
3. O salário mínimo em Portugal é de 450 euros por mês. 90 contos por mês. 3 contos por dia. Muito pouco para pagar a renda da casa, a comida, as roupas, os sapatos, a água, a luz, os transportes, talvez o telemóvel...
Há um ano, o governo, as confederações patronais e os sindicatos, assinaram um acordo para, em 2010, aumentar o salário mínimo de 450 para 475 euros. Menos de 1 euro por dia! Mas agora, as tais confederações patronais - que assistem mudas e quedas ao escândalo dos vencimentos dos gestores - vêm ameaçar que se o salário mínimo subir para 475 euros será um desastre nacional. E, em contrapartida, propõem 460 euros! Isto é, uma subida de 33 cêntimos por dia!
4. O relatório da CMVM revela que o salário anual médio dos administradores da banca e empresas cotadas na bolsa foi, em 2008, de 777 mil euros, isto é, de 64.750 euros por mês (cerca de 13 mil contos mensais ou 426 contos/dia).
64.750 euros por mês equivalem a 136 salários mínimos. Isto é, para atingir o valor do ordenado mensal de um desses gestores, um trabalhador que receba o ordenado mínimo terá de trabalhar mais de 11 anos!!!
5. Mas ainda não é tudo. Há mais, bastante mais.
2008 - como todos nós sabemos - foi um ano de crise, de falências, de desemprego galopante, de apertar o cinto. Mas, enquanto a esmagadora maioria dos Portugueses fazia contas à vida, cortava nos gastos, fazia sacrifícios ou - nos casos mais dramáticos - passava fome, os senhores do dinheiro tiveram, em média, aumentos de 13 %.
13% sobre 777 mil euros são cerca de 100 mil euros, qualquer coisa como 20 mil contos por ano e para cada um. Só de aumentos!
2009 - um ano que agora se vai embora sem deixar saudades - foi também um ano de enorme crise na indústria automóvel. Mas nem tudo foram desgraças: no Vale do Ave, território dos têxteis e do mais alto desemprego do País, nunca se venderam tantos Porches. Quanto mais desempregados na rua, mais Porches na estrada!
Como se tudo isto ainda não bastasse, os próprios ex-administradores da banca - como é o caso do BCP - têm regalias e mordomias que ultrapassam todos os limites do imaginável: jactos privados para viajarem, seguranças, automóveis de luxo, motoristas, etc. Foi-me contado um caso em que a excelsa esposa de um banqueiro se deslocava regularmente a Nova Iorque - em Falcon privado pago pelo BCP - para ir ao dentista e fazer compras! E que o seu excelso marido (ex-presidente do BCP e membro da Opus Dei) dispunha de um batalhão de seguranças 24 horas por dia, também pagos pelo banco.
Será que uma pessoa com a consciência tranquila precisa da protecção de 40 seguranças? Nem Sadam Hussein tinha tantos...
6. Mas, afinal de contas, quem paga tudo isto?
Para além dos pequenos accionistas, é óbvio que são os clientes dos bancos, essa espécie sub-humana que a banca submete à escravatura e trata a chicote, essa legião de explorados que ainda olha para os bancos - e sobretudo para os banqueiros - com o temor reverencial de quem vê um santo como Jardim Gonçalves em cima de uma azinheira.
Quando um banco remunera um depósito a prazo com 1% de juros e cobra 33% nos cartões de crédito, é-lhe fácil conseguir dinheiro para cobrir todos os excessos e bacanais financeiros do sistema bancário. Quando um banco paga metade dos impostos de qualquer empresa em situação difícil, o dinheiro jorra, enche os cofres dos bancos e os bolsos dos banqueiros.
É nisto que estamos. Até quando?
Será que a um sistema que assim existe e que assim funciona - encostado ao Poder e protegido pela Lei - se pode chamar Democracia?
PS - E que ninguém, de má consciência, tenha a desvergonha de me vir dizer que isto é demagogia!